Malinha Vermelha

São 11 horas e eu estou no escritório terminando um artigo que o deadline é terça-feira 18h00. Eu vou almoçar daqui a pouco. O Fernando está, certamente, pilotando sua moto ao encontro de um cliente que o espera com pressa em algum canto da cidade. Mandaram no grupo do meu condomínio – grupos de condomínio, de hidroginástica e de mães da escolinha acabam, fatalmente, compondo nosso WhatsApp em algum momento da vida – que um sujeito está praticando assaltos em cima de uma moto, com uma mochila do Ifood nas costas. A última vítima foi uma mulher, que perdeu seu relógio de muitos mil reais e o celular. E ganhou um trauma.

O Fernando já deve ter feito sua entrega, agora, provavelmente está indo buscar mais um lanche para entregar em outro destino. Porque esse trampo envolve gasolina, direção defensiva, agilidade, paciência e poucos direitos trabalhistas.

Era um sábado, eu tinha pedido um combinado de comida japonesa pelo Ifood. Me sentindo mega tecnológica porque, afinal, eu aprendi a mexer nesse aplicativo há mais ou menos um mês. É que eu faço o estilo analógico – o tipo que ainda flerta por jornal e carta, sabe? Deitei no sofá e fiquei… O tempo de previsão para entrega era de aproximadamente 50 minutos. Chegou antes. Eu, de roupão. Fernando tira a maquininha: “dona, é crédito ou débito? ” – “Débito”… O cartão não passou. A bandeira que eu uso havia deixado de ser admitida pelo aplicativo naquele mesmo dia. E agora? Perguntei se o Fernando tinha tempo de me esperar, que eu ia tentar resolver. Ele disse que não tinha, na verdade. Mas, esperaria. Perguntei se ele tinha cigarro, que poderia fumar sem problemas. Ele me disse que eu li o pensamento dele. Tirou o cigarro e começou a fumar. Conversamos por uns 15 minutos. Um frio de 8 graus. Eu de roupão e cabelo preso para cima. Fernando fumando e me contando sobre sua rotina de trabalho como entregador de aplicativo. Ele tenta conciliar com o seu outro trabalho, que é como mestre de obras. Mas, ultimamente, não tem exercido esse segundo. Me explicou que o aplicativo, na verdade, terceiriza a entrega e não possui vínculo nenhum com o restaurante. Vínculo mesmo ali, na verdade, é difícil de encontrar. Ele ainda brincou dizendo que “tem que ter terceirização, né? Se não, não é Brasil…”. Disse que volta e meia tem algum problema com um carro ou outro, mas, ninguém nunca paga por nada. É só “preju”. Me contou dos horários de trabalho e que dá duro para conseguir juntar uma graninha para gastar com o filho pequeno. Que levou um calote de uma mulher que já era “montada na grana”, mas mesmo assim não quis pagar ele pela reforma da casa dela. Papo de uns 3 mil reais.

A jornada do Fernando é mais longa que as 8 horas previstas na Consolidação das Leis Trabalhistas. Não existe seguro-desemprego. Fundo de garantia. Férias remuneradas. Ele abriu mão do que conseguiria em um trabalho formal, com carteira de trabalho regular.

A grande questão no caso dos aplicativos é que para a rede que o Fernando trabalha, por exemplo, existe um incentivo financeiro para que os entregadores permaneçam nas ruas por horas ininterruptas. Se um motoboy ficar 12 horas “pela área”, como dizem, ganha R$190,00 além do dinheiro das entregas. Caso ele fique offline, se distancie da área sem nenhum pedido em mãos ou recuse alguma corrida, não ganha esse benefício. Ou seja – para ganhar esse incentivo, o Fernando precisa ficar imóvel e aceitar todas as corridas que nele chegam.

Existe ainda os ciclistas, que “concorrem” com os motoboys. Fernando conhece alguns que dormem na rua para ficar “pela área” com o aplicativo online, pedalam mais de 30 km e chegam a fazer o uso de algumas drogas para aguentar o “perrê”.

Minha mãe chegou em casa, e, finalmente, me emprestou o cartão com a bandeira que aceitam. Paguei o combinado. Fernando aceitou um novo chamado e seguiu rumo a mais uma entrega. O aplicativo e o dever lhe chamam. Mesmo ele tirando 15 minutos da sua rotina exaustiva para trocar uma ideia comigo.

Porque são 11 da manhã, eu estou escrevendo um artigo para entregar na terça. Daqui a pouco eu vou almoçar. Decidi que Times New Roman é melhor que Arial. O Fernando está aceitando algum chamado, em algum canto da cidade. Ou ele tá “pela área”, esperando alguém chamar. Porque eu estou aqui e ele lá. E o caso do sujeito que assalta usando a mochila do Ifood me fez fechar a janela no sinaleiro quando meus olhos vão de encontro com a tal malinha vermelha. E, carregando uma delas, está o Fernando… meu grande amigo por 15 minutos.