Marcela e a ânsia de viver

Eu conheci a Marcela em dezembro de 2014. Marcela sempre estava preocupada com o que iria acontecer dali para frente. Queria saber qual roupa ela vestiria para o trabalho na terça e com quem ela sairia no sábado. Marcela fazia mercado e deixava, marcados em uma lista, todos os jantares da casa – na segunda, é risoto; na terça, filé com fritas… E assim ia. Marcela tinha uma agenda onde marcava os horários – tudo em seu futuro perfeito. Às 15h00 da segunda-feira estava marcada sua cabeleireira e manicure. 16h00, reunião com o chefe. 17h30, buscava a filha na escola – sempre sem atrasos. Se eu ligasse para Marcela chamando para um vinho e risadas a reposta era padrão: “deixa só eu checar minha agenda…”. Marcela não queria conversar muito. Ela queria saber o que ia almoçar amanhã. Queria saber onde, quando e porquê. Queria saber para quem ela iria ligar em um momento de crise. Saber em qual mão seguraria. Marcela não ligava muito para os problemas dos outros – os seus eram sempre maiores e mais urgentes. Não estava muito aí para o que acontecia na sala ao lado. Quando a filha falou “te amo” pela primeira vez, ela estava ao telefone, marcando um horário para dar a vacina dos 2 anos e 7 meses. Marcela marcava barbeiro para o marido e sabia tudo que ele ia falar, antes mesmo de ele dizer.

Estava certo. Marcela sofria de ansiedade. Daquelas mais agudas. Eu, que não sou psicóloga nem médica, recomendei yoga, exercício, análise ou ver o pôr-do-sol no terraço da cidade. Marcela disse que não dava. Tinha que fazer mercado. Eu dizia que todas essas coisas me ajudaram. Marcela não ligou. Estava preocupada com a tarefa da filha.

Pobre Marcela. Um dia, se deu conta de que não conseguia viver o presente. Estava sempre fazendo planos e pensando no amanhã. Tive uma conversa com ela, em 2019, sobre vida. Falei sobre como importa estarmos ali para quem precisa da gente – de corpo e alma, sem pensar que os nossos problemas são maiores que os dos outros. Contei para ela que o que vamos jantar é desimportante, contanto que a gente tenha todos sentados à mesa conosco. A cabeleireira e a manicure podem esperar. A ligação para marcar a vacina pode ser amanhã. Aquela reunião com o chefe pode ter um atraso de 10 minutos caso ela se estenda em um almoço gostoso com uma pessoa querida.

A vida é feita de imprevistos. Nada de preto no branco ou agendas fechadas. Marcela descobriu isso só em 2020. Ontem, tentei ligar para ela e ela não me atendeu. Devia estar se ocupando com o que realmente importa. Um “eu te amo” da filha, talvez…