Morre mais um na Zona Norte

Maria é mãe de dois. Márcio e Flávio. Acorda cedo, todos os dias. Passa um café forte e compra pão fresco na padaria da esquina, em Colombo. Antes das crianças acordarem, Maria já se serviu de café e está olhando as roupas que quaravam no varal se darem por secas – para finalmente poder recolhê-las. Márcio acorda e chama Flávio, comem juntos, pedem a benção da mãe e vão para a escola andando. Juntos.

Maria encontra a vizinha no quintal e diz com orgulho que Márcio tirou boas notas no semestre passado e que sonha em ser médico. Já Flávio está com algumas dificuldades, mas, sonha em ser advogado. A manhã passa e as crianças voltam. O almoço é quase sempre o mesmo – com as coisas que vêm na cesta básica doada por um coletivo que faz ação social na região. Para hoje é só arroz e feijão. Maria se desculpa com as crianças “é fim de mês”, diz, com os olhos marejados. Depois de comer, Márcio vai rever toda a matéria que teve pela manhã. Flávio vai para o campinho jogar bola. A tarde vai caindo e Maria pede a Deus que o mês que vem seja melhor que esse.

A vizinha comenta com Maria que está tendo um “surto de virose” na cidade. Que é preciso lavar as mãos com frequência e tentar não pegar muito no rosto. As crianças sentam à mesa para comer torradas (sobras do pão da manhã) e a mãe explica das novas necessidades de higiene. “Mas amanhã o coletivo está aí cedo, a gente pode perguntar para eles”, termina ela. No dia seguinte, um sábado, chega Marina e bate à porta da casinha de madeira de Maria: “dona Maria! Como vai? Viu, eu trouxe esses três frascos de álcool em gel. Estamos com um surto de Corona Vírus, não é brincadeira. A prefeitura vai suspender as aulas das crianças a partir da semana que vem. Fiquem em casa e se cuidem!”. Maria, sem entender muito bem, concorda e pega os frascos. Repassa a mensagem para as crianças e segue a vida. Recebeu mais uma cesta básica e está com fé no mês que vai virar.

As crianças vão à escola na segunda-feira e voltam com o recado de que agora é tudo em EAD – explicam o que é EAD –. Maria não tem televisão, tampouco internet ou computador. Pensa e chora. Será um ano perdido. Pensa no sonho de Márcio e de Flávio. Se sente impotente.

A água acaba na terça. “Mas tínhamos que lavar as mãos toda hora!”, pensa Maria. Sem água para o feijão, para o arroz e para o banho. A estiagem veio para ficar. Maria não sabe o que significa a palavra estiagem, mas, aguenta firme.

O filho da vizinha é envolvido com drogas e conhece todos da região. Em uma tarde, Márcio estava estudando na sala com o que tinha em casa e Flávio saiu para comprar pão, a polícia chegou na região procurando o tal vizinho. Tiros para todos os lados. Maria se esconde no guarda-roupas com Márcio e reza por Flávio.

Flávio não volta. Nem encontram o corpo. Confundiram com o vizinho. Preto não precisa de velório digno em tempos de pandemia, disseram para Maria. Três dias depois, o corpo de Flávio no IML.

Maria é mãe de um. Márcio. Acorda cedo, todos os dias. Compra pão fresco na padaria da esquina, sem café e sem água, em Colombo. Antes de Márcio acordar, Maria já preparou um pão e está olhando, com os olhos marejados de saudade, as roupas que quaravam no varal se darem por secas – para finalmente poder recolhê-las. Menos as roupas de Flávio. Márcio acorda e não chama o irmão, come com um lugar vazio à mesa, pede a benção da mãe e vai para o quarto, sozinho.