Sem Açúcar

Quando eu era pequena eu jogava basquete, mas, tinha medo da bola. Minha mãe sempre dizia para eu tomar cuidado com as aulas de Educação Física. É que eu tinha levado uma bolada no rosto, certa vez. Depois, eu namorava, mas, tinha medo do fim. Meu pai sempre dizia que as coisas são cíclicas. É que eu tinha me magoado muito, um dia. Quando eu fiquei adolescente, queria dormir tarde, mas, não conseguia me livrar do medo do escuro. Que menina mais boba, minha mãe pensava. É que eu tinha assistido um filme de terror que me marcou para sempre.

Somos uma junção de todos os nossos traumas, penso. Sou uma junção de todos os meus medos, concluo. Os medos não são poucos. Eu ainda tenho medo de ficar sozinha. Tenho medo de ter crise de pânico no avião. Tenho medo de bater o carro. Medo de dormir com a porta aberta. Medo de perder minha avó e o medo do escuro ainda não passou. Não sei se vai passar. Não sei se quero que passe.

Compreender e dar as mãos para meus medos foi o ato mais bravo que eu tive a coragem de fazer. Eu sempre disse que gostava de café, desde pequena. Eu não sabia se gostava, mas, eu gostava. Meu pai dizia que gostava, então, eu gostava também – e sem açúcar, sempre. Coisa mais fácil essa de emprestar a personalidade dos outros e não precisar assumir a nossa. Meu pai tinha um São Bernardo. E eu sempre fui uma pessoa de cachorros. Sempre fui uma pessoa de cachorros e de dormir com a porta fechada. Meu pai dormia com a porta fechada e com a televisão alta. Acordava, ia para o escritório defender gente e tomar café sem açúcar.

Só que eu completei alguns anos a mais e a personalidade teve que me encontrar. A personalidade, o medo de avião, de escuro, de porta aberta e de bater o carro. O São Bernardo morreu. E eu ainda me denomino uma pessoa de cachorros. O Corinthians vai mal. Temos PIBinho. Eu comento eleições dos EUA como quem sabe tudo e torce pelo Bernie. E os medos – de escuro é sanado com a meia luz. O de avião vai bem com Rivotril. Desisti, definitivamente, do basquete e das boladas. Não penso mais no fim. Agora, eu tenho uma filha que coloca saltos e diz que é a mamãe. Tenho minha personalidade. Tenho minha própria casa e faço café todas as manhãs – sem açúcar, pai. Sem açúcar…