Entrevista: Sandra Terena, primeira mulher indígena a assumir uma secretaria nacional do Governo Federal

Sandra Terena é a primeira indígena no país a assumir a Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial. O caráter pioneiro também se deu quando, em 2003, ela foi a primeira indígena formada em jornalismo no Brasil. Alieté, como é chamada na aldeia Icatu, fundada por seu avó no interior de São Paulo no início do século passado, nasceu em Curitiba e fomentou sua carreira e atuação na mesma cidade, onde ganhou visibilidade ao realizar trabalhos com comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas. Nesta entrevista, Sandra conta um pouco da sua trajetória, enaltece o caráter transformador da educação e comenta as ações que pretende realizar à frente da pasta.

 

Confira entrevista com a Secretária Nacional de Políticas Públicas de Igualdade Racial, Sandra Terena.

 

Como a senhora se sente sendo a primeira indígena à frente de uma pasta tão importante para os direitos humanos e sociais no país?

 

Sandra Terena – É, de fato, a primeira vez que uma indígena assume a Seppir. Eu vejo que isso é um reflexo do atual governo, que vem com essa proposta da inclusão, de abrir o leque de trabalho dentro da igualdade racial e dar destaque a todas as categorias que se incluem na questão étnico-racial. Acredito, também, que minha chegada aqui se deve pelo fato de ter me preparado para isso. É muito difícil quando se é indígena e vai para a cidade, a questão do preconceito é muito forte, mas eu sempre tive uma fé muito grande de que eu precisava me preparar e que, por maiores que fossem as dificuldades, eu tinha que batalhar por isso. Então eu me sinto muito feliz por representar, à frente da Secretaria, tanto meu povo Terena, quanto os outros parentes indígenas que a gente sabe que passam por uma situação muito difícil.

 

Ser indígena te coloca numa situação de minoria social no país. Ser uma indígena pós-graduada te insere numa minoria numérica, dentro de uma minoria social. Desse modo, de que maneira acredita que a educação pode mudar a vida de um jovem indígena?

 

Sandra Terena – É de fundamental importância que as políticas públicas tratem a questão da educação indígena já nas séries iniciais, para que haja um acompanhamento desse jovem desde cedo até a universidade. Mas até chegar nessa última fase, eu sei que é um caminho muito difícil, como muitos jovens indígenas, eu passei isso na pele. Sempre estudei em escola pública, venho de uma família de baixa renda, sempre me esforcei e gostei de estudar, mas, mesmo gostando de estudar, é muito difícil. Consegui a muito custo fazer a faculdade. Na época que me formei, a Funai tinha um política de bolsas de estudo que possibilitou que eu fizesse minha graduação. Pude fazer a pós-graduação porque apresentei minha tese à instituição, pedi uma bolsa e fui contemplada. Mas é muito difícil, ainda mais para o indígena que sai da aldeia, porque tem a questão da moradia, a depender do curso, tem gastos altíssimos com materiais, como na área da saúde, que é muito mais cara. No meu caso, mesmo na área de humanas, enfrentei uma dificuldade muito grande porque tinha muitos livros que eu não tinha condições de comprar, mas tive uma amiga que foi um anjo para mim, porque ela tentava ler os livros antes, em uma semana, para me disponibilizar. Tem a questão do transporte que, para se ter uma ideia, eu morava numa região que era na extremidade oposta da faculdade em Curitiba, que ficava na divisa com outro município. Eu precisava pegar cinco ônibus para ir e cinco para voltar. Na época, era só o meu pai trabalhando, eu não tinha estágio, nem nada, então eu ia com o dinheiro contado da passagem e um trocado que eu tinha que escolher entre um salgado ou um suco, não dava para os dois. Se era muito puxado, imagina para um indígena que sai da aldeia para estudar na cidade? Nesse sentido, é realmente difícil, mas sempre procuro dizer para as pessoas que é necessário persistir, porque só através do estudo nosso povo vai ter autonomia para lutar de igual para igual na sociedade que a gente vive.

 

Como jornalista, seu trabalho se tornou concreto por diversas mídias. Desde exposições fotográficas a documentários. Existe algum trabalho que considere especial na sua área de formação? Por quê?

 

Sandra Terena – No jornalismo eu tive a oportunidade de passar por várias áreas, como tv, rádio, internet, assessoria de imprensa, mas os trabalhos mais gratificantes para mim foram os que eu pude atuar na valorização da cultura indígena. Um dos que posso destacar foi uma exposição acerca do povo Guarani Mbya, no litoral do Paraná. Esse trabalho, que levava o título de 'Beleza Ameaçada', abriu a Noite dos Museus, em Portugal, em 2008. Foi muito bacana na abertura desse evento ver as pessoas encantadas e apaixonadas por uma parte do nosso povo, que é o povo Guarani, o qual eu tenho muito carinho. Como jornalista, um trabalho que considero gratificante, foi sobre uma vila de pescadores, também do Paraná. Eram seis mil famílias que haviam sido lesadas por um grupo de advogados e o trabalho de jornalismo foi uma ferramenta essencial, por meio de denúncias de que havia advogados corruptos, essas famílias de pescadores puderam ser indenizadas da forma correta, transformando toda uma comunidade através do jornalismo. Então isso para mim foi realmente muito gratificante, saber que a comunicação pode ser usada também para a transformação.

 

 

A senhora já teve trabalhos relacionados a povos indígenas, quilombolas e pescadores. De que modo acredita que o contato com esses grupos diversos pode favorecer seu trabalho à frente da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial?

 

Sandra Terena – Favorece no sentido de ter havido contato com as comunidades que estão nas pontas, no sentido de ir até esses locais e conhecer a situação real daquelas pessoas. Esse trabalho in loco abre a nossa mente e nos instiga a pensar quais são as formas que a gente pode trabalhar para que essas comunidades tenham uma qualidade de vida melhorada.

 

Já há um esboço de quais ações devem continuar e quais serão iniciadas pela pasta? Em especial, para os povos indígenas.

 

Sandra Terena – Nosso intuito é manter as políticas e os direitos já assegurados, voltados à população negra, mas também ampliar o enfoque de trabalho para os povos indígenas, ciganos e demais povos étnicos. Uma das ações que vejo como muito bacana é o Programa Juventude Viva, que é um trabalho que tem como foco o jovem negro, e acredito que merece destaque por termos uma população afrodescendente bastante numerosa no país, que costuma ser uma das parcelas mais vulneráveis da sociedade. Vejo que a gente precisa dar continuidade a esse projeto. Falando de jovens ainda, uma questão muito sensível que acreditamos que precisa ser trabalhada é a do suicídio indígena, então é uma questão que a gente quer atuar seriamente no sentido de mitigar essa mazela social. E também trabalhar junto aos povos ciganos. A gente está trazendo um diretor que é de origem cigana, para que essas populações também se sintam representadas.

 

Entre 2013 e 2018, a senhora teve uma experiência na administração pública, quando foi diretora de Mobilidade Urbana no município de Curitiba. Paralelo a isso, atuou nas Conferências Municipais de Direitos Humanos, nas temáticas de igualdade racial e de pessoas com deficiência. De que maneira essa vivência recente pode ser aproveitada nesse seu novo momento e quais políticas discutidas naquele cenário a senhora acredita que podem se tornar nacionais?

 

Sandra Terena – Foi uma vivência importante, porque eu pude ter contato com vários seguimentos pela primeira vez. De modo geral, eu vejo que os problemas que Curitiba enfrenta não são muito diferentes dos problemas do resto do país. A questão do preconceito, que é muito presente. Na segunda-feira (21), a gente teve o Dia Nacional de Combate à Intolerância, o que nos remete ao fato de que esse é um problema que deve ser combatido nacionalmente. Fortalecer políticas públicas no sentido de valorização do respeito às diferenças e religiões, principalmente as de matriz africana, recorrentemente vitimadas pela violência, deve ser uma bandeira de todos. O contato com as políticas para pessoas com deficiência foi também de grande valia nesse processo, desde as coisas mais básicas, como pensar a questão da acessibilidade, das vagas específicas no estacionamento. Porque são políticas que priorizam o dever do Estado com o cidadão, independentemente da origem ou condição.

 

Em geral, nas suas aparições públicas, a senhora está sempre caracterizada com indumentárias indígenas. Gostaria que falasse um pouco sobre essa escolha.

 

Sandra Terena – Eu gosto muito desse cocar – apontando para o ornamento em outro local da sala. Inclusive, brinco com meu pai, porque no Povo Terena, o adereço de cabeça das mulheres é diferente. E esse cocar era utilizado pelo meu pai. Ele, por mais de 30 anos, sempre foi uma grande liderança. Fazia um trabalho com várias comunidades do litoral do Paraná e sempre foi muito respeitado. Numa certa ocasião, precisei ir a um evento em Curitiba, e achei importante pedir o cocar emprestado. Eu até brinco com ele que, quando uso o cocar, ele passa o poder do meu pai para mim. É um símbolo que traz bastante representatividade. É como se meu pai me empoderasse e desse a permissão de continuar a missão dele. Para mim carrega uma simbologia muito grande e eu uso com bastante respeito. Além do carinho por também remeter a meu pai.

 

Você gostaria de deixar alguma mensagem para as populações indígenas?

 

Sandra Terena – É importante que nós, povos indígenas, procuremos, sempre que possível, estudar, nos informar, ter muita força de vontade, não desanimar. Falo por mim mesmo. Para hoje estar aqui, me formar, enfim, ter oportunidades e realizar trabalhos relevantes, foi graças ao estudo. Então, acredito que é importante se capacitar, estudar, fazer cursos… isso é fundamental. Para a gente melhorar como pessoa, mas também para ter contato com outras realidades. Acredito que isso é essencial para a gente fazer a diferença. Eu vejo na aldeia dos meus parentes. Uma prima que fez Enfermagem e trabalha no posto de saúde da própria aldeia, um primo que fez Farmácia com Bioquímica, então é muito gratificante perceber que existe toda uma geração seguindo esse caminho. Na minha família, fui a primeira a possuir uma graduação, então me faz feliz ver que tem outras pessoas se formando e atendendo à própria comunidade. Isso é gratificante e a gente precisa que isso se amplie cada vez mais.

 

Com informações da Assessoria de Comunicação/Funai