Conheça a história de Arã, a jovem indígena que sofria estupro coletivo e foi resgatada pela ONG fundada por Damares Alves

Quando Alcilane Arã Oliveira da Silva, uma jovem indígena do povo Sateré Mawé, completou a maioridade, o Ministério Público Federal, mesmo sabendo dos riscos, solicitou o encaminhamento de volta para a aldeia indígena onde ela sofrera abusos em parte de sua infância e adolescência. O MPF pegou uma adolescente vulnerável, com deficiência, vítima de maus tratos e estupro coletivo, e a reinseriu no ambiente de risco. Antes de ser “devolvida” para aldeia pela justiça, ela foi encaminhada ao abrigo municipal Casa Comunitária, em Duque de Caxias, destinado a adolescentes do sexo feminino. Isolaram-na num abrigo e não permitiram qualquer contato com os cuidadores e nem mesmo com os parentes da menina. Alcilane permaneceu isolada neste abrigo, sem receber visitas, a despeito dos pedidos dos cuidadores e dos parentes indígenas, que queriam cuidar dela. A jovem indígena disse a familiares que se sentia em uma cadeia para menores.

Alcilane na chácara da Atini fazendo equoterapia

Périplo

Esse périplo aconteceu depois que o MPF não aceitou a acolhida de Alcilane pela ONG ATINI, fundada por Damares Alves, que deixou a organização ainda em 2015. Enquanto ela estava sendo cuidada pela entidade, tinha uma vida alegre com seus pais, que viviam com a jovem na chácara da ATINI para realizar tratamentos de saúde em Brasília. Hoje, após a intervenção do MPF ela está condenada a uma vida de abusos e abandono, incapaz de garantir sua própria segurança.

Imbróglio

O imbróglio começa quando de um lado, a ATINI, entidade que salvou mais de 50 crianças da prática do infanticídio e de práticas culturais nocivas diz que salvou a menina da situação de risco. Do outro lado o MPF nega que existia estupro coletivo e infanticídio indígena entre o povo Sateré e, portanto, Alcilane e sua filha deveriam ficar na aldeia.

Laudo antropológico revela que jovem sofreu estupro coletivo na aldeia

Atualmente ela não mora com os pais, que não conseguem controlá-la. Vive sozinha em um casebre, exposta a todo os tipos de abusos. Perambula durante a noite pelos rios e pelas matas, sem rumo, e sem ninguém que cuide dela. O Ministério Público Federal moveu um processo, que está em segredo de justiça, contra a ATINI, acusando a ONG de sequestro. O laudo antropológico realizado ao longo de três anos e finalizado em janeiro de 2019, ao qual a reportagem teve acesso com exclusividade, informa que isso não é verdade. Não houve sequestro. Ao contrário, a ATINI, juntamente com seus pais, salvou a jovem de práticas nocivas e de uma realidade escondida até hoje pelo órgão, que será revelada por esta reportagem.

O estudo traz uma reviravolta no caso e mostra que, no início da adolescência, em sua aldeia do povo Sateré Mawé, Alcilane foi submetida a estupro coletivo e abusos com frequência. Conhecido pelos indígenas como “puxirum”, o abuso coletivo, embora não sendo tradicional da cultura Sateré, parece ser uma conduta comum em algumas tribos no Brasil.

Pais confirmam abusos

Na audiência ocorrida em 19 de setembro de 2016, no Fórum da cidade de Maués (AM), a convite do Ministério Público e da Justiça Federal, o pai da jovem, Zevaldo de Oliveira afirmou que a filha sofreu constantes abusos sexuais e, por este motivo, resolveram deixar a aldeia. Neste mesmo sentido prossegue o testemunho de uma enfermeira e agente da saúde indígena. Ela compartilhou suas experiências e a triste realidade de abusos que testemunhou, trazendo assim um panorama dramático da situação a que são submetidas algumas das mulheres daquela etnia, sem que possam encontrar apoio ou suporte das autoridades responsáveis até os dias de hoje. Edilene Sateré, irmã de Alcilane também foi ouvida pela reportagem em vídeo gravado nesta terça-feira (12) e confirmou os abusos sexuais na aldeia, que são escondidos pela justiça. O depoimento desta indígena coloca em xeque a ação do MPF que nega o estupro coletivo na aldeia, mesmo sem ter visitado o local. 

Entrevista com Márcia Suzuki

A reportagem do Agora Paraná conversou com exclusividade com a linguista Márcia Suzuki, líder da organização na época.  Ela informou que desde sua fundação a ATINI desenvolveu um programa de apoio ao estudante indígena, no qual recebíamos estudantes de várias tribos que precisavam de ajuda para concluir seus estudos. Aproveitavam este programa para conscientizar jovens indígenas sobre os direitos das crianças em situação de vulnerabilidade nas aldeias. Em 2010 receberam Zevaldo Pereira, agente de saúde da tribo Sateré-Mawé, juntamente com sua esposa e 4 filhos, como parte deste programa. Entre os filhos estava a jovem Alcilane, cujo objetivo era cuidar da saúde dela na chácara e protegê-la dos abusos sexuais, tudo com autorização da FUNAI. 

“A organização providenciou atendimento médico e psicológico para a menor. Aos poucos fomos conhecendo melhor a dramática saga daquela jovem de olhos brilhantes, com visíveis problemas de comunicação e de desenvolvimento social e intelectual. Na ATINI ela recebeu amor e cuidados, e era tratada com dignidade e carinho por todos os cuidadores”, disse Márcia.

Gravidez

O laudo antropológico sobre Alcilane revela ainda que devido aos  abusos sofridos, ela tinha uma sexualidade aguçada já adolescente, e os pais precisavam vigiá-la o tempo todo. Mesmo com todos os cuidados, ela engravidou de um indígena que era estudante que ela considerava como namorado. “Essa gravidez trouxe grande angustia para a família, que sabia que Alcilane não teria condições mentais de cuidar de uma criança. Por diversas vezes tentaram fazê-la abortar com remédios caseiros, porque eles diziam não ter condições de cuidar do bebê. Quando a gravidez estava mais avançada, toda a família decidiu retornar para Maués sem levar a Alcilane. Não a levaram porque a gravidez foi diagnosticada com sendo de alto risco. A adolescente ficou sob a responsabilidade de cuidadores ligados a ATINI”, informou Márcia Suzuki.

“A medida que gravidez avançava, Alcilane foi se tornando agressiva e desorientada, rejeitando o bebê e tentando se livrar dele. Várias vezes teve que ser socorrida por cuidadores, pois socava a barriga gritando que não queria a criança. Outras vezes foi encontrada com faca tentando cortar a barriga para matar o bebê. Foi se tornando mais e mais evidente para os cuidadores que, por conta dos problemas mentais, Alcilane não teria condições de cuidar de seu bebê. A criança correria risco de vida. De fato, o psiquiatra que a atendeu emitiu um parecer recomendando que depois do parto a criança fosse afastada da mãe, sob risco de prática de infanticídio. O recém-nascido foi então encaminhado para guarda judicial de uma família, de acordo com o desejo dos avós maternos, Zevaldo e sua esposa Hélia, porque Acilane rejeitou a criança.

MPF quer retirar criança dos pais adotivos e mandar para aldeia mesmo sob risco

O Ministério Público Federal pretende através da ação, que corre em segredo de justiça, retirar a criança, hoje com seis anos de laços com os pais adotivos, e solicita a devolução da criança para a mãe biológica, mesmo a própria mãe afirmando que não tem condições de cuidar da criança. Sem conhecer a realidade da aldeia os promotores solicitam a remoção da criança, que conforme apuração desta reportagem vive feliz com seus pais adotivos em uma cidade que não será revelada para salvaguardar a criança. As fotos que esta reportagem teve acesso que comprovam isso serão enviadas ao Ministério Público Federal.

A ATINI – Voz pela Vida informou através de sua advogada, Maíra Barreto, Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca na Espanha, que  entende que vem sofrendo perseguições em virtude de sua postura intransigente na defesa dos direitos humanos universais, não admitindo quaisquer tentativas de relativização de tais direitos. A postura relativista dos direitos humanos, condicionando sua titularidade e abrangência, tem sido defendida por parte do MPF, contrariando os tratados internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário, os quais obrigam o Estado Brasileiro a combater as práticas tradicionais nocivas, tais como o infanticídio indígena e o estupro coletivo, protegendo as vítimas e dando voz a elas.

O que o MPF pensa sobre o infanticídio e práticas culturais nocivas

O órgão, não falou especificamente sobre este caso, que está em segredo de justiça. A Procuradora dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, que já foi coordenadora da 6ª Câmara (ou seja, autoridade máxima do Ministério Público Federal, no que pertine às questões indígenas) acredita que a criança indígena só se torna gente depois de certos rituais e publicou um artigo dizendo que “Fala-se que alguns grupos indígenas praticam infanticídio, dentre eles os yanomami. Mais uma vez, a questão nuclear é a definição de vida. A mulher yanomami, quando sente que é chegada a hora do parto, vai sozinho para local ermo na floresta, fica de cócoras, e a criança cai ao chão. Nessa hora, ela decide se a pega ao colo ou se a deixa ali. Se a coloca nos braços, dá-se, nesse momento, o nascimento. Se a abandona, não houve, na concepção do grupo, infanticídio, pela singela razão de que a vida não se iniciou. São visões que, goste-se ou não, não podem ser descartadas, sob pena de, em afronta à Constituição e a outros tantos documentos internacionais, se negar qualquer valor às asserções de verdade do outro”., disse a procuradora do MPF, em seu artigo.

“Entes pouco qualificados para viver”, diz antropóloga referência para o MPF

A antropóloga Marianna Holanda, considerada referência pelo MPF, chama as crianças indígenas deficientes de “entes pouco qualificados para viver”. Em artigo ela diz que  “Uma coisa é certa: transpor a noção de indivíduo para julgar o processo de elaboração da pessoalidade e humanidade indígenas é impor “a vida como obrigação” em horizontes relacionais onde os pontos de referência dependem da agencialidade, nas quais transpor nossas fronteiras que marcam onde a vida começa ou onde termina exige uma arbitrariedade que é muito violenta. Colar o signo da morte trágica em entes pouco qualificados para viver é fruto de uma ética fechada à dinâmica, à impossibilidade do diálogo. De uma ética cega aos seus próprios mecanismos de exclusão e afirmação, produzindo o direito à vida como o fundamento de todos os outros direitos constitucionais, mas que permite diariamente pequenas falhas inimputáveis na garantia deste direito fundamental”.